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Revista Alma

O RABINO E A MOÇA NUA

 

No livro que deu origem à peça, a palavra transgressão aparece 57 vezes. Traição, 86. Desejo tem 23 citações e nudez ao menos 20. Sem contar os sinônimos. Parece Ana Karenina ou Madame Bovary, mas é a “A Alma Imoral”, um ensaio escrito em 1998 pelo então jovem rabino Nilton Bonder. Por uma curiosa trama de coincidências, o livro caiu nas mãos da atriz Clarice Niskier, que, apesar do sobrenome judaico, se considera budista. E é mais ou menos esse o início da história. Uma judia budista? Bonder e Clarice estavam em um programa de TV e o rabino saiu em defesa da atriz. Aliás, o livro de Bonder é sobre isso: traição, transgressão e infidelidade. Mas uma infidelidade relativa, não como a dos clássicos de Tolstoi e de Flaubert – ou até como estas –, mas, sobretudo, como a da própria Clarice.

 

Transgressão talvez seja a palavra adequada. Invertendo a abordagem clássica, o rabino afirma que o corpo é, por natureza, conservador. É nossa alma que traz o gérmen da transgressão – um dos fundamentos, segundo o próprio Bonder, de todas as grandes religiões. É do que tratam a peça e o livro. Por que a religião, uma disciplina da alma, deveria ser apenas tradição e conservadorismo? Jesus, Buda, Maomé e o próprio Abraão – todos, sob o ponto de vista da tradição, foram infiéis e transgressores. Jesus curava aos sábados, Buda questionou as bases do hinduísmo, Maomé foi perseguido na própria Meca e Abraão traiu seu pai e sua cultura para se estabelecer numa terra que fosse sua.

 

Clarice devorou o livro e, como budista, se sentiu totalmente representada. E também como criadora. A arte tem dessas coisas: contrariando todas as evidências, a atriz enxergou ali uma peça. Nem o próprio Bonder deve ter acreditado: “A Alma Imoral” nasceu e vai morrer ensaio, não tem diálogos e nem tampouco ação dramática. Mas, além de budista, Clarice deve ser rodrigueana: se os fatos provam o contrário, pior para os fatos. Não seria a lógica, ou o óbvio ululante, que a deteriam. Fora tocada pelo livro de Bonder e o queria nos palcos. Não importavam os diálogos, nem a ação dramática. Aliás, nada lhe soava tão contemporâneo quanto o Velho Testamento.

 


Aquele que não faz uso de todo o potencial de sua vida, de alguma maneira diminui o potencial de todos os demais. {Nilton Bonder – A Alma Imoral}


 

O rabino achou melhor não contrariar. Nem quando ela disse que seria um monólogo – gênero que, todos sabem, não é dos mais populares. O convite a Hamir Haddad, como supervisor de direção, tampouco lhe soou provocativo. Longe disso. Para Bonder, judeus e árabes precisam mesmo dividir o palco. Mas numa noite aparentemente como as demais, ainda nos ensaios, Clarice ligou para o rabino da Congregação Judaica do Brasil, constrangida, mas convicta e repleta de bons argumentos:

 

“Sabe, rabino, estive pensando e… Bem, foi uma ideia que surgiu… Só uma ideia… A gente fala tanto de corpo… De alma… Da nudez essencial… Neste sentido… Considerando que há um conceito… Uma questão que é, de fato, muito maior… Enfim, rabino, vou resumir: E se eu fizer a peça nua?”

 

Cabalista e gaúcho, Bonder respirou fundo. Rabinos precisam de ar de vez em quando.
A proposta de Clarice não era gratuita. Ao defender sua “alma imoral”, Bonder propõe uma nova abordagem do corpo e relativiza o nu. “Não há nudez na natureza”, escreve nas primeiras páginas do texto, que Clarice adaptava com paixão para o teatro.
“Rabino?”

 


Quantas pessoas poderíamos ter tirado ‘para dançar’ na vida e não o fizemos por ofertar sacrifícios ao nada? Sacrifício ao deus da timidez, ao deus da vergonha, ao deus do medo de ser rechaçado e assim por diante. {Nilton Bonder – A Alma Imoral}


“Alô?”

 

Com a autoridade milenar dos rabinos, Bonder foi taxativo:

 

“Me dê algum tempo, Clarice. Posso te ligar amanhã?”

 

Sabemos todos a resposta. A Alma Imoral está em cartaz há 10 anos, lotando salas e colecionando prêmios. Tornou-se um dos maiores sucessos de crítica e de público de nosso teatro e foi vista por mais de 300 mil pessoas. É um espécime raro na delicada relação entre arte e religião, que no embate entre transgressão e tradição raramente tende para a primeira.

 

CORRA PARA VER, AINDA DÁ TEMPO

SÃO PAULO
Teatro Eva Herz
3 de setembro a 18 de setembro
Sábado às 21hs e domingo às 19hs

 

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